O que a alta do café revela sobre os riscos contratuais?

No início de 2025, o mercado cafeeiro brasileiro foi marcado por uma disparada no preço da saca do arábica, que atingiu o maior patamar desde 2011. De acordo com levantamento divulgado pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), medido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre março de 2024 e de 2025, o preço do café moído registrou alta de 77,78%. Essa variação nos preços, ainda que significativa, não configura evento extraordinário e imprevisível capaz de justificar a revisão contratual. O agronegócio, considerado uma “indústria a céu aberto”, tem o risco como elemento intrínseco às suas operações. Contratos de venda antecipada e a lógica do risco Ao firmarem contratos de venda antecipada, que envolvem a comercialização de grãos ainda não colhidos ou mesmo não plantados, os produtores assumem, de forma consciente e voluntária, riscos físicos, operacionais e financeiros que integram a equação econômica da avença. Esses contratos são firmados por múltiplas razões, como a mitigação da volatilidade de preços e a captação de recursos para o custeio da safra. Nessa lógica, o risco — longe de ser circunstância excepcional — compõe o próprio objeto da obrigação contratual assumida pelas partes. Contudo, diante da expressiva valorização da commodity, muitos produtores se veem diante da possibilidade de deixar de cumprir os contratos firmados anteriormente – por exemplo, em março de 2024 – e comercializar os grãos no mercado à vista com margens mais elevadas. Inadimplemento eficiente: teoria e controvérsias Nessas hipóteses, parece ser, ao menos em tese, economicamente mais vantajoso descumprir o contrato, arcar com a cláusula penal estipulada e revender o produto com margem superior. Essa lógica encontra respaldo na teoria do inadimplemento eficiente (efficient breach). Segundo essa teoria, desenvolvida no contexto da análise econômica do direito, a multa contratual funcionaria como alternativa economicamente racional ao cumprimento da obrigação, conferindo ao devedor a possibilidade de escolher entre cumprir ou pagar (POSNER, 2009). Neste modelo, típico dos sistemas de common law, o pagamento da cláusula penal extinguiria o vínculo obrigacional, legitimando o inadimplemento voluntário. No ordenamento jurídico brasileiro, contudo, a lógica do efficient breach é alvo de críticas substanciais por: Efeitos sistêmicos: quando o oportunismo afeta a cadeia Nesse contexto, a ideia de que o devedor poderia se liberar da obrigação principal mediante o simples pagamento da cláusula penal estimula condutas oportunistas, compromete o dever de cooperação entre as partes e transforma a obrigação em instrumento de especulação econômica. Em muitos casos, especialmente no agronegócio, os credores possuem legítimo interesse na entrega dos grãos ajustados, cuja função não é apenas econômica, mas instrumental à execução de obrigações subsequentes assumidas em cadeia. O inadimplemento do produtor, somado à dificuldade de aquisição de grãos no mercado spot — seja por questões de escassez, elevação de preços ou perda de competitividade —, pode comprometer o cumprimento tempestivo de contratos firmados com terceiros, acarretando, em efeito dominó, novos inadimplementos e gerando instabilidade em toda a cadeia produtiva. Abuso de direito e os limites do contrato O inadimplemento deliberado, ainda que acompanhado do pagamento da penalidade estipulada contratualmente, pode configurar abuso de direito. Nessa perspectiva, ao descumprir voluntariamente a obrigação, o devedor extrapola os limites do exercício regular de seus direitos, conferindo à relação contratual finalidade distinta daquela acordada pelas partes e daquela economicamente e socialmente esperada. Nessas circunstâncias, sua conduta caracteriza ato ilícito, nos termos do artigo 187 do Código Civil. As repercussões de condutas dessa natureza transcendem o âmbito das relações privadas. No setor agroindustrial, a quebra deliberada de contratos compromete a confiança entre os agentes da cadeia produtiva, desestimula a formalização de novas operações e restringe significativamente o acesso ao crédito rural. Conforme pesquisa conduzida por Christiane Leles Rezende e Décio Zylbersztajn (2011), o inadimplemento estratégico gera instabilidade nas relações econômicas e comerciais, resultando em maior exigência de garantias para operações de crédito e custeio, dificuldades adicionais nas negociações com tradings e revendas, além da retração nos contratos de venda antecipada. O preço da escolha e o valor da confiança Em períodos de forte valorização da commodity, a exemplo do ocorrido com a safra de café entre 2024 e 2025, o inadimplemento eficiente, na prática, revela-se ineficiente do ponto de vista sistêmico. Quando o contrato passa a ser tratado como simples alternativa econômica, em detrimento da prestação pactuada, compromete-se a lógica de confiança que sustenta as operações antecipadas no agronegócio. A disseminação dessa conduta enfraquece a previsibilidade econômica, restringe o acesso ao crédito e desestabiliza as relações comerciais do setor. Referências: BURANELLO, Renato. Manual do direito do agronegócio. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018. FORGIONI, Paula. Contratos empresariais: teoria geral e aplicação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. G1. Café fica 77% mais caro em um ano, segundo IBGE. Rio de Janeiro, 11 abr. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2025/04/11/cafe-encarece-77percent-em-um-ano-na-inflacao-de-marco-segundo-ibge.ghtml. Acesso em: 11 abr. 2025. PELA, Juliana Krueger. Inadimplemento eficiente (efficient breach) nos contratos empresariais. Revista de Direito das Garantias Reais e Pessoais, v. 3, n. 1, p. 77–88, 2016. POSNER, Richard A. Let’s never blame a contract breaker. Michigan Law Review, Ann Arbor, v. 107, n. 8, p. 1349–1363, jun. 2009. REZENDE, Christiane Leles; ZYLBERSZTAJN, Décio. Quebras contratuais e dispersão de sentenças. Revista Direito GV, São Paulo, 2011. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rdgv/a/xM6F9gFC77psLbjWGzC6DPB/.

Esposa do produtor rural fora da recuperação judicial: entenda por que essa decisão favorece os credores

Uma decisão recente do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso (TJ-MT) trouxe um alerta importante para quem atua no agronegócio e, principalmente, para os credores que enfrentam dificuldades para receber seus créditos de produtores rurais em recuperação judicial.O Tribunal deixou muito claro que o simples fato de ser casada com um produtor rural não garante à esposa o direito de participar do processo de recuperação judicial. Para estar protegida pelos efeitos da recuperação, a esposa — assim como o marido — precisa comprovar que exerce atividade rural de forma regular e contínua, por pelo menos dois anos, conforme exige o art. 48 da Lei nº 11.101/2005. Análise de caso No caso analisado (AI nº 1027232-50.2024.8.11.0000), o TJ-MT entendeu que, para que a esposa seja incluída no polo ativo da recuperação judicial, é indispensável que demonstre sua atuação individualizada na atividade rural, não sendo suficiente o mero vínculo conjugal. A decisão foi clara: “É indispensável a demonstração de que o cônjuge participa ativamente da atividade rural ou integra a estrutura empresarial da produção rural, não bastando, para sua inclusão na recuperação judicial, o mero vínculo conjugal com o produtor.” (TJMT – AI nº 1027232-50.2024.8.11.0000, 2ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Marilsen Andrade Addario, j. 05/02/2025, publ. 19/02/2025) Esse entendimento modifica, na prática, a dinâmica de muitos processos de recuperação judicial envolvendo produtores rurais. É comum que marido e esposa assinem juntos contratos de financiamento, CPRs, empréstimos bancários ou garantias reais. Contudo, a assinatura conjunta não garante à esposa a proteção da recuperação judicial. Se ela não comprovar que exerce atividade rural de forma autônoma ou integrada à estrutura produtiva, permanece como devedora ou avalista e continua sujeita às cobranças judiciais. No caso concreto, o TJ-MT observou que a esposa do produtor rural não apresentou nenhum documento que comprovasse sua atuação rural. Não havia Livro Caixa Digital do Produtor Rural (LCDPR), empregados registrados, nem movimentação contábil. Sua declaração de imposto de renda sequer indicava atividade rural — constando apenas como empresária de outro ramo. Além disso, a documentação exigida pelos artigos 48 e 51 da Lei 11.101/2005 não foi apresentada de forma adequada. Esse cenário favorece diretamente os credores. Isso porque, enquanto o produtor está protegido pela recuperação, negociando prazos e condições, a esposa, se excluída do processo, permanece plenamente executável. Os contratos que ela assinou como devedora ou avalista mantêm sua força, e o credor pode seguir com a cobrança, inclusive atingindo bens garantidores. Recomendações aos advogados É importante que os advogados que representam credores estejam atentos a esse ponto. Em casos em que a esposa figure como coobrigada nos contratos, mas não haja documentação que comprove sua atuação efetiva na atividade rural, é possível requerer sua exclusão do polo ativo da recuperação judicial, o que permite retomar a cobrança diretamente contra ela, inclusive com ações de execução ou cumprimento de sentença. Já os advogados dos devedores, por sua vez, devem redobrar a atenção no momento de incluir a esposa no pedido de recuperação. A recomendação é reunir, desde logo, provas robustas da atuação efetiva dela na atividade rural — como contratos firmados em nome próprio, documentos fiscais, movimentações bancárias, declaração de imposto de renda com indicação de atividade rural, entre outros. A ausência desses elementos compromete a legitimidade e pode resultar na exclusão da proteção judicial. Sob o ponto de vista técnico, vale lembrar que o art. 971 do Código Civil permite ao produtor rural, mesmo sem registro prévio como empresário, ser equiparado a tal, desde que comprove o exercício regular da atividade. Essa comprovação, porém, é exigida individualmente. Ou seja, cada pessoa física que pretenda integrar o polo ativo da recuperação deve demonstrar que atua, de forma autônoma ou integrada, na atividade rural. Considerações finais A decisão do TJ-MT traz um precedente importante e uma mensagem clara: a recuperação judicial não pode ser usada como escudo automático para proteger todo o núcleo familiar, sem atender aos requisitos legais. Cada envolvido precisa comprovar, documentalmente, que exerce atividade rural de forma regular. Essa realidade exige mais estratégia dos credores e mais responsabilidade dos produtores. Saber identificar quem realmente tem direito à recuperação judicial pode ser determinante para o sucesso de uma cobrança no agronegócio — especialmente em um cenário onde a inadimplência e os pedidos de recuperação seguem em alta. Referências Lei nº 11.101/2005 (Lei de Recuperação Judicial e Falências), TJMT – Agravo de Instrumento nº 1027232-50.2024.8.11.0000,STJ – REsp 1.800.032/MT,STJ – REsp 1.947.011/MT.

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